Era uma vez um negociante que tinha uma filha, prendada,
bonita e
inteligente.
Filha única, tornara-se o alvo de todo o afeto e de todas as esperanças de seus
pais. Possuidores de muito dinheiro, conseguia a
jovem tudo
quanto desejava, mas o seu coração era vazio. Nada havia
que não
estivesse ao alcance de suas mãos.
Entregou-se
de corpo e alma aos divertimentos profanos. Percebia,
entretanto,
que a felicidade que buscava, dando pasto às paixões, estava
um pouco
adiante das suas realizações.
Foi de queda em queda e, depois,
de abismo em
abismo. Entrou pelos lupanares a dentro, chegando aos
lugares mais
abjetos. Recebeu insultos e tapas de miseráveis. Mas no
fundo de seu
coração guardava imperecível o seu amor para com os pais.
Os duros
desenganos, longe de apagar o seu afeto filial, mais o
intensificavam.
Certa noite
recebeu a visita de um dos seus amigos favoritos, moço
de boa
família e de acurada educação. Estava, entretanto, completamente
transformado,
o rosto cheio de manchas, a boca infecta, o bafo
impregnado de
vapores alcoólicos. Ele tentou agarrá-la, mas ela fugiulhe.
– Você tem
medo de mim? – perguntou-lhe. – Sou um farrapo de
homem... Uma
pústula social... Você está certa. É verdade. Mas eu sou
apenas um
espelho onde poderá também contemplar o seu próprio rosto
... Que é da
menina de outrora? da moça rica? da jovem elegante? Um
farrapo,
também. . .
Foi somente
nesse dia que a pobre decaída compreendeu a
magnitude de
sua miséria, moral e física. Resolveu atirar-se em baixo de
uma
locomotiva. Tinha apenas um desejo para satisfazer, antes da morte:
ouvir a voz
saudosa da querida mãe.
Dispôs de
tudo quanto tinha, distribuiu entre suas infelizes
companheiras
as roupas e objetos de estimação, preparando-se, depois,
para uma
longa viagem, onde haveria uma interrupção, seguindo-se a
eternidade.
Viajou todo o
dia, concentrada em si, recordando os dias mais
felizes de
seu passado, a juventude e a meninice. E a viagem prolongou-se pela noite a
dentro. Checou, pela
madrugada, à
sua terra natal. Temendo que o dia a surpreendesse, foi da
estação a pé
à casa de seus pais. Pretendia encostar o ouvido à porta,
esperar que
sua mãe se levantasse, na alvorada, como de costume, dentro
de uma ou
duas horas, ouvi-la chamando pelo marido, e depois retirar-se,
como se fosse
uma ladra receosa da chusma de perseguidores.
Fez como
havia pensado, mas, ao sentar-se na soleira, ao colocar o
ouvido à
porta, percebeu que estava aberta e se moveu sobre os gonzos.
Lá dentro se
ouvia barulho, chinelos se arrastavam, cadeiras eram
empurradas. O
coração batia descompassadamente, mas não tinha forças
para se
levantar.
Então
abriu-se a porta e surgiu de dentro, com a lamparina na mão,
a estremecida
velhinha por quem viera de tão longe.
– Minha mãe,
perdoe-me, – disse banhada em lágrimas. – Não
queria
entristecê-la com minha presença. Desejava apenas ouvir sua voz,
pela última
vez, antes da morte, mas a porta estava aberta... Não foi
culpa
minha...
Levantando-a,
carinhosamente, beijando-a na face, sua mãe lhe
respondeu:
– Filha,
desde que você partiu nunca mais esta porta se fechou, nem
esta
lamparina ficou sem chama durante a noite. Quantas vezes o vento
fez ranger os
gonzos, tantas vezes me levantei, pensando que você estava
de volta. Não
queria que minha filha viesse um dia procurar-me e
pensasse que
esta porta não lhe seria aberta...
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